Sentimento Crônico

Cheio de prosa! Poesia, vide verso!

Textos


 

O valor de cada um



Já era tarde e o dono do bar dava início ao ritual de colocar para fora os renitentes fregueses que teimavam em ficar. Cadeiras já haviam sido postas sobre as mesas e ele, numa atitude nada sutil, já trazia o balde com água e o esfregão para o meio do salão, não porque o assoalho encardido por anos de descuido fosse ficar muito melhor, mas para ver se enxotava de vez os últimos circunstantes. Àquela hora da madrugada, somente bêbados, putas e desocupados é que ainda faziam de conta que o último gole seria eterno. Invariavelmente, eram aqueles que não tinham lugar melhor para ir.

Entretanto, iniciada a esfregação do chão, um a um, foram todos cedendo ao apelo silencioso que os incitava a partir. Um único homem restou colado ao balcão, sorvendo a derradeira talagada de um copo de cerveja que, por mais de uma hora, tivera a garrafa que lhe servia de invólucro sorvida aos poucos. O dono do bar se aproximou, temendo que ele fugisse sem pagar. Porém, depois de vasculhar todos os bolsos, de um deles surgiu uma nota amarrotada; à toda evidência, a última que restara. Se era uma porção infinitesimal do que pudesse representar a riqueza em dinheiro, ao menos era suficiente para saldar a dívida da bebida e, ainda, tinha por sobra o troco de uma moeda; apenas uma moeda!

Paga a conta, o homem pôs-se porta afora, antes que a água do balde que era espalhada lhe ensopasse os sapatos furados. Ele ganhou a calçada, saiu vagando a esmo e quase rindo da ironia de ter gasto os últimos cobres para tomar uma cerveja. Já cansado de vagar em busca de trabalho, ao ver que o tenebroso fim se aproximava, resolveu celebrá-lo no balcão de um boteco. Sentia a moeda que lhe sobrara provocando o roçar do forro de seu bolso em sua perna. As calças já haviam ganho dimensões desproporcionais para sua magreza, resultado das poucas refeições diárias que, há semanas, se vira obrigado a assumir como dieta.

Caminhava ele devagar, tentando retardar o quanto pudesse o momento de chegar em casa. A visão do que sobrara de seu lar era-lhe muito doída. Por ali, quase ninguém mais habitava as sombrias ruas engolfadas pela madrugada. Percebeu ele ao longe, um pouco mais à frente, na próxima esquina, que havia um desvalido dormindo sob um pedaço de papelão. Por instantes temeu por passar perto do indigente.

Porém, a poucos passos do vulto encolhido na esquina, de algum lugar saltou um outro sujeito. Com arma em punho, falou em tom intimidador que lhe fossem passados pertences e dinheiro, sob a evidente ameaça de que um tiro fosse disparado. O coração do homem, sim, disparou e ele, gaguejando, tirou do bolso a única moeda que lhe restava e anunciou que aquilo era tudo que possuía. A vida já o havia tomado de assalto bem antes e pouco deixara para mais alguém.

O ladrão fez-se de incrédulo e chacoalhou a arma em frente a seu rosto, aumentando o tom ameaçador. Chegou a apalpar sua vítima de cima em baixo em busca de algo, mas nada encontrou. Tomou a moeda nas próprias mãos e deu uma sonora gargalhada. Disse num tom de chacota que naquela noite se sentia magnânimo, atirou a moeda aos pés do pobre homem ainda assustado e disse-lhe que tal miséria já era mais desgraça do que um ser poderia merecer. Não seria ele a dar um fim à desdita de um derrotado. A morte seria um prêmio e ele não queria agraciar com tal sorte quem lhe frustrara o intento de roubar. Que o miserável, então, padecesse por continuar vivo. E tão rápido quanto surgiu, o ladrão assim desapareceu na penumbra das ruas.

O homem, ainda trêmulo, agachou-se e colheu a moeda atirada como um desaforo a seus pés. Retomou, assim sua marcha. A essa altura, o indigente que se aninhava na esquina e que a tudo assistira, olhava perplexo e com um sorriso desdentado para a figura do homem vitimado por um assalto que não lhe havia roubado nenhum centavo, mas que certamente teve como intenção final tirar-lhe boa parte da dignidade.

Aproximando-se daquele infeliz que se amontoava na esquina, o homem tirou do bolso aquela última moeda e deu-lhe como esmola. A banguela do indigente sumiu em sua expressão de quem nada entendia, afinal, aquele desgraçado estava dando seu último trocado e, assim, nada mais lhe restaria. Em meio à sua perplexidade ainda perguntou o porquê daquilo. O homem simplesmente respondeu:

  Para o dono do bar que me entregou esta moeda, ela representa apenas a diferença entre o consolo desgraçado que ele proporciona a seus fregueses e a minha aparente desgraça inconsolável. Para o ladrão que tentou me assaltar, esta moeda não é suficiente para fazer jus à sua obra nefasta no mundo, que é tomar o que não lhe pertence, pela falta de hombridade de sustentar a si mesmo com trabalho. Para você, esta moeda é a consagração natural de sua própria desgraça, própria de quem já desistiu de lutar pela vida. Para mim, esta moeda não tem valor nenhum. Todos vocês tentaram me medir pela quantia que eu trazia no bolso. Nenhum de vocês tem a exata dimensão do valor que um homem deve ter. Amanhã, eu volto à minha busca, sem corromper a ninguém, sem tomar nada de ninguém e sem esmolar a ninguém. Acaso eu não seja bem sucedido, ao menos irei até o fim como um homem íntegro.

O indigente, ainda com a moeda na mão, saiu debaixo do papelão em que se abrigava e sentou sobre ele. Olhou para seu benfeitor e respondeu:

   Você fala bonito, hein! Grande filósofo deve ser você. Agradeço pela moeda, pois amanhã terei meu café da manhã garantido. Porém, você aí, “bacana”, cometeu erro bem pior do que esses que acabou de desfiar nesse discurso fajuto. Você quis me medir pela forma como me vê por fora e, sem que eu lhe pedisse, quis me dar uma esmola. A vida é dura, meu “chefe”! Mal sabe você que um dia eu já estive na situação em que você está e jamais desisti, só que – pode acreditar em mim! – palavras bonitas e pensamentos com ares de sabedoria não põem o pão na mesa. Este mundo não dá prêmios pelo esforço que a gente faça, mas pelo resultado que a gente conquiste. Hoje, eu consegui esta moeda. E você?!

O homem retirou-se sem nada responder e sem olhar para trás.

...

O tempo passou e o dono do bar, que emprestava seu estabelecimento como pano de fundo e cenário das mazelas do mundo, morreu próspero, muitos anos depois. O ladrão, que nunca achava que o produto dos furtos era o bastante, foi flagrado na semana seguinte e morreu trocando tiros com a polícia. O homem que declarava integridade, por mais ideais nobres que discursasse, descobriu que falar é fácil, fazer não o é e, assim, já não suportando o peso da miséria, tirou a própria vida, semanas depois. O indigente... Que importa? Era só um indigente! Viveu o melhor que pode o quanto lhe foi possível.
 
                                         .oOo.                                       

OBED DE FARIA JUNIOR
Enviado por OBED DE FARIA JUNIOR em 27/12/2009
Alterado em 27/12/2009


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras