Sentimento Crônico

Cheio de prosa! Poesia, vide verso!

Textos


A caça e o caçador

A casa estava apinhada de gente. Afinal, apesar da noite paulistana oferecer opções das mais variadas, considerando a qualidade da música ao vivo apresentada no local – de primeiríssima qualidade – difícil era encontrar por ali um cantinho para se recostar.

Cheguei, perguntei a algum dos garçons – eu já era conhecido – se havia algum lugar vago. A muito custo ele encontrou um espaço no balcão do bar para que eu ficasse, além de tudo, de pé aguardando uma mesa.

Pedi a costumeira cerveja – que é só o que tomo por lá porque os preços são proibitivos – e, de imediato, um balde chegou com cinco latas incrustadas por entre muito gelo.

A música entoada era muito boa. O cantor de plantão naquele horário desfilava seu repertório e talento em canções variadas da melhor tradição brasileira.

De repente, por uma janela, numa das mesas que se posicionam no espaço fora do salão, notei uma mulher a me fitar. Ela não disfarçava seu interesse. É certo que do alto de meus quarenta e tralálá anos, não sou um homem de se jogar fora e ela, com certeza, apreciava o espécime.

Meu ego não se importou nenhum pouco e fiz de conta que não percebi. Ia comendo os amendoins servidos à vontade no balcão enquanto degustava minha cerveja gelada, tudo entre uma tragada e outra do cigarro. Com o rabo dos olhos eu tentava, obviamente, seguir os movimentos daquela loira que me olhava.

Um dos garçons chegou, tocou-me no ombro e avisou-me ao pé do ouvido que uma mesa havia vagado lá no cantinho. Sem pestanejar, encaminhei-me para o local indicado que, por aquelas coincidências que ninguém explica, ficava exatamente na linha de visão da loira faminta de mim.

Continuei a fazer-me de desentendido. Após alguns minutos, adentrou ao local um vendedor ambulante a oferecer rosas. É inevitável que algum romântico de plantão acabe adquirindo alguma das flores para ofertar à sua acompanhante, seja ela quem for, esposa, amante ou companhia de ocasião. Homem é tudo igual: imagina que com uma flor poderá levar uma mulher para cama. Mulher é tudo igual: aceita a flor porque isso lhe afaga o ego, mas só se dá a quem tem vontade.

Pois bem! Como quem não quer nada, chamei o florista, entreguei-lhe cinco “mangos” e pedi que entregasse uma flor cor-de-rosa à loira que, até ali, me observava de forma que, segundo ela acreditava, seria disfarçada. Por cinco “mangos” o sujeito mataria a própria mãe, que diria entregar uma flor a uma freguesa.

Ela recebeu a flor e ele apontou em minha direção. Não faço idéia do que conversaram, mas ela olhou para mim e sorriu. Isso foi mais do que suficiente para que eu, num gesto solto no ar, a convidasse para dançar. O “crooner” entoava Lupcínio Rodrigues lindamente. Ela sorriu. Só sorriu e continuou a conversar com as duas amigas que estavam à sua frente.

A porta do banheiro ficava um pouco adiante de mim e, passados uns dez minutos, desde que tudo isso aconteceu, ela levantou-se e foi em direção aos “toilettes”. Alguém poderá dizer que isso deu-se por necessidade fisiológica. Contudo, minha experiência de vida ensinou que, quando uma mulher, que está acompanhada de outras mulheres, resolve ir sozinha ao banheiro, é porque quer dar bola a alguém ou não se dá com as amigas. No caso, como elas aparentavam dar-se muito bem, "alguém" era eu.

Ela ficou exatos três minutos no banheiro, o que só veio a confirmar que para lá se dirigiu com o único intento de passar à minha frente, porque uma mulher nunca fica menos do que de dez a quinze minutos no banheiro – sabe Deus, fazendo o quê!

Quando saiu, olhou-me de soslaio e eu sorri, enquanto levantava meu copo de cerveja a cumprimentá-la, tal qual uma taça do melhor champanhe. Ela sorriu novamente e continuou sua marcha. Eu levantei e fui em direção a ela. A essa altura, já era inevitável, a criatura estava no papo.

Abençoado jogo do flerte!

***

Quando aproximei-me dela, no local ainda ressoavam os últimos acordes de um samba-canção, enquanto a audiência aplaudia a impecável performance.

Nem bem ela puxou a cadeira para sentar-se, chegando por detrás, peguei suavemente em sua mão, o que fez com ela olhasse para trás com uma expressão que era um misto de surpresa e alegria. Eu lhe sorri e nada disse. Apenas caminhei de volta em direção ao salão conduzindo-a com delicadeza pela mão.

Os músicos iniciaram a introdução de nova música: "Besame". Posicionei-a junto a mim, sempre olhando fundo em seus olhos e, obviamente, com a feliz expressão de quem encontra um chafariz no meio do deserto.

Não posso ser qualificado exatamente como um pé-de-valsa, mas me viro bem chacoalhando o corpo nos três movimentos básicos: para frente, para trás e para os lados. Segurei sua cintura com firmeza sem perder a delicadeza, afaguei a parte superior de sua cabeça com minha face e saímos a dançar.

Há quem dance pelo simples prazer de exibir habilidades e coreografias. Não é meu caso, já que meus atributos enquanto dançarino não são de dar inveja a ninguém. Eu danço pela busca de um prazer erótico: os corpos colados se roçando em movimento ritmado, os hálitos se entrecruzando pela proximidade dos rostos, os humores se amalgamando pela efusão dos espíritos.

Iniciei a conversa em premeditados sussurros em seu ouvido. Esse é um momento de certa tensão, porque, caso não se faça a opção certa, a possibilidade de cativar pode durar somente o tempo de uma única música. É nesse instante que a intuição deve comandar a fala, porque é preciso fazer graça sem rudeza, ser agradável sem bajulação e, principalmente, ser original sem ser pedante. E, graças a Deus, nesse ponto cada mulher é um ser único e o desafio é descobrir o que a faz sorrir, o que a lisonjeia e o que lhe chama a atenção de forma positiva. Tudo isso, em meio a comentários banais e superficiais. Não se trata de uma cantada, mas de uma abdução simulada.

Dançar ajuda muito, porque os hormônios fazem boa parte do serviço, se os movimentos corporais atingirem as áreas corretas. Quanto a isso, bendita seja minha envergadura que permite invariavelmente que eu envolva minha presa.

Jamais confessarei o que disse a ela naquele momento, mas posso afirmar que foi eficaz. Ela, que de início estava hesitante, já se deixava levar com desenvoltura, como se seu corpo fosse extensão do meu.

E o bolero – ah! que bênção divina – criou o fluído etéreo que então permitiu a conjunção de nossos seres.

***

A música terminou e, de repente, estávamos ali, no meio da pista de dança, com os corpos grudados. O ato de afastá-los demorou alguns segundos além do que o normal.

Convidei-a sentar-se à minha mesa o que ela recusou. Agradeceu-me a flor e a dança, porém disse estar em companhia de suas duas amigas e, portanto, não poderia deixá-las. Soltei um sorriso amarelo e, obviamente, nada podia fazer diante da recusa. Vá se entender uma mulher! Passou um tempão se insinuando e, agora, fugia da raia.

Tornei a sentar-me, pedi um copo limpo e abri outra cerveja. Enquanto fumava um cigarro, ia pensando comigo que tais situações podem ser embaraçosas. Se, como forma de reação eu tomasse outra parceira qualquer para dançar, isso poria meu ego nos eixos, mas jogaria uma pá de cal sobre todo o investimento feito até ali. Por outro lado, se me mostrasse amuado, fazendo cara de vítima, passaria a impressão de uma fragilidade que, sinceramente, não me afeta nessas circunstâncias.

O que fazer? Nada! Tomei a cerveja calmamente, desviando a atenção para o pequeno palco onde outros músicos assumiam suas posições e, por algum tempo, simplesmente esperei.

Por certo que, de onde eu estava era fácil constatar que as três mulheres conversavam entre si e riam-se de algo. Alguma coisa ela contava às amigas que, entre risinhos infantis e gritinhos contidos, divertiam-se com a situação. Será que eu havia dito ou feito algo errado?

O tempo trabalha em favor de quem espera, quando a situação exige paciência. Alguns minutos se passaram e, inevitavelmente, uma delas precisou ir ao banheiro. Mulheres, como já se disse, vão ao banheiro em bando ou, quando em pequeno número, em dupla. E assim aconteceu que ela e uma de suas amigas dirigiram-se aos “toilettes”.

Ao passarem, ela sorriu mais uma vez para mim. A amiga dela também! Puxa, que amiga!... Mas eu não poderia desviar o foco naquele instante. Fiquei ali tamborilando os dedos e acompanhando a música. Eis que me deu um repente. Peguei minha cerveja e fui em direção à mesa onde elas estavam.

A amiga remanescente olhou-me espantada ao ver que eu tomava aquela direção. Indiferente a isso, pedi licença e sentei-me bem à sua frente. Como se a conhecesse de longa data, comecei a contar qualquer banalidade e a fazer comentários sobre o bom gosto do local. Ela, que de início não sabia o que fazer, acabou cedendo e respondeu com algo pertinente. Eis que ali estava eu, sentado na mesa de minha escolhida, aguardando que ela voltasse de suas insondáveis alquimias sanitárias.

Ela voltou! Aproximou-se com o cenho franzido e, por um instante, imaginei que eu iria levar uma bofetada no meio da cara. Contudo, estando ela mais próxima da mesa, levantei-me e afastei a cadeira para que ela se sentasse. A atitude inusitada inibiu-lhe qualquer reação.

E ali ficamos os quatro, conversando sobre nada, rindo de tudo e procurando alguma coisa para dizer que efetivamente valesse a pena. Passados alguns minutos, uma delas avisa que estava chegando a hora de irem embora.

Perguntei se tinham condução, se uma carona seria necessária e coloquei-me à disposição. Uma das amigas disse que estava de carro e levaria as outras duas até seus respectivos destinos. Quase ao mesmo tempo, acenou a um dos garçons com a mão e solicitou a conta.

Patrícia – esse era seu nome, enfim – pela primeira vez tomou uma atitude positiva e surpreendeu-me. Sem que eu esperasse, deixando de lado o recato que toda mulher jura ter, perguntou se eu me importaria em levá-la. Concordei, é claro!

Tal proposta era a coroação de muito empenho!

***

Entramos no carro e, enquanto ela se acomodava no banco e colocava o cinto de segurança, aproximei-me e dei-lhe um beijo de leve nos lábios. Seus olhos brilharam. Repeti a dose, mas dessa feita, minha língua encontrou até as paredes de sua alma.

Pus-me em posição, soltei o freio de mão, engatei a primeira e saí, enquanto ela recostava a cabeça em meu ombro e agarrava-se em meu braço.

Feliz, nem pensei em perguntar para onde estávamos indo. Só fui dirigindo pela madrugada paulistana em busca do motel mais próximo.

Entre uma troca de marcha e outra, minha mão tocou sua perna; depois repousou em seu joelho; e, por fim, passeou no paraíso. Ela lambia meu pescoço, mordiscava o lóbulo de minha orelha e enfiava a mão em meu peito entre os vãos da camisa semi-aberta.

Como foi complicado manter a atenção no trânsito! Que risco imenso corríamos ali com aquele carro em movimento que, literalmente estava sem motorista, porque meu corpo estava ao volante, mas meu espírito estava sobre aquela mulher.

Por sorte, o motel mais próximo não era muito longe. Chegamos aflitos, entramos apressados e começamos a nos devorar antes mesmo de fechar a porta do quarto.

Os detalhes do que se seguiu só ficaram na memória como impressões de um sonho. Banheira e espuma, nudez e erotismo, furor e sofreguidão, prazer, prazer e prazer!

Um cigarro e depois um cochilo. Quando acordei, ela já estava de pé e praticamente recomposta, me esperando para sairmos.

Sorri-lhe, com o ar de um guerreiro que clama pelos louros da vitória e pedi-lhe o número do celular.

Ela olhou-me e deu uma leve gargalhada. Recusou! Disse que aquilo terminava ali. Só esperava um último gesto de cavalheirismo para que eu a deixasse em um ponto de taxi. Disse que a noite fora muito boa e que eu era uma “gracinha”, mas não queria nada mais do que já havia conseguido.

Eis a surpresa final. Eu, que pensei estar no comando daquele jogo, é que fui, desde o princípio, a caça!

Abençoadas sejam as mulheres do terceiro milênio! O mundo será bem melhor em suas mãos. 

 

OBED DE FARIA JUNIOR
Enviado por OBED DE FARIA JUNIOR em 23/11/2008
Alterado em 04/09/2009


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