Sentimento Crônico

Cheio de prosa! Poesia, vide verso!

Textos


Minha mãe ensinou-me


          Chovia e fazia um certo frio, naquela manhã. Eu, meninote de meus sete ou oito anos, estava sentado ao lado da máquina de costura onde minha mãe realizava serviços para ajudar na renda doméstica. Ela costurava tecidos para guarda-chuvas. Isso mesmo! Retirava na fábrica os cortes já prontos e na medida certa e os levava para casa, onde os emendava, um a um, até tomarem aquela forma circular que encobre as varetas. Eu, do meu infantil ponto de vista, ficava imaginando que estavam sendo desenhados com tecidos os gomos de uma mexerica preta. Um gomo, noutro gomo, noutro gomo... até que o conjunto terminasse completo.

          Agora, me lembro bem, eu estava mesmo era de castigo. Bem que eu queria sair dali para brincar em outro lugar qualquer. Mas minha mãe, como medida disciplinar por alguma travessura que eu tivesse aprontado, determinou que eu lá ficaria ao lado dela, até que aquela pilha de gomos estivesse toda ela reunida em diversas mexericas pretas. Em princípio, o caráter terapêutico do castigo já estava surtindo seus efeitos, posto que nada mais tedioso que ficar olhando aqueles movimentos rápidos e repetitivos de colocar pedaços de tecido para serem engolidos vorazmente pela agulha da máquina de costura.

          Sem nada a fazer, comecei a puxar conversa. Conversa de criança é uma sucessão infinita de perguntas. Comigo não era exceção. Por que era preciso costurar guarda-chuvas? Por que o serviço era buscado naquela fábrica? Como era o dono da fábrica? Quanto ela ganhava para fazer aquilo? Quantas unidades era preciso costurar até que se ganhasse o suficiente para comprar uma bicicleta? Minha mãe – a paciência em pessoa – atendia a todas as indagações com respostas lacônicas, pouco explicativas e que, na verdade, tinham o único intuito de não me deixar falando sozinho. Aliás, de vez em quando, entre uma resposta e outra, ela insistia para que eu calasse minha boquinha. Sempre fui um bom filho e, apesar de resistir a ordens que frustrassem minha curiosidade, obedeci o comando de silêncio.

          No gabinete da máquina de costura, existia uma pequena caderneta espiral onde minha mãe anotava as quantidades retiradas, as costuradas, os valores a receber e os que haveriam de ainda ser pagos. Sem que ela notasse saquei duas folhinhas e tomei o lápis por empréstimo. Na absoluta falta do que fazer, fiz uma relação das respostas às perguntas que eu havia feito. Coisa assim como: guarda-chuva sempre vai existir; tem bastante guarda-chuva para costurar; dona Amélia trabalha para seu Nagib costurando guarda-chuvas; dona Amélia é amiga de minha mãe e a apresentou a seu Nagib; costurar guarda-chuva não é para comprar bicicleta; e por aí ia.

          Escrevi a relação, fiz alguns desenhinhos nas margens ao lado (um guarda-chuva, dona Amélia, seu Nagib, etc) e entreguei para minha mãe dizendo orgulhoso: “Mãe, escrevi um livro da sua vida”. Ela tomou os papeluchos de minha mão, com uma cara de enfezada ao perceber que eu havia estragado sua caderneta. Antes de ralhar, entretanto, deu uma lida nas letras de forma soltas em garranchos, parou por um instante, ficou com os olhos vermelhos e me sorriu candidamente. Fitando-me nos olhos, em sua simplicidade, me disse: “Filho, seu livro está muito bonito. Mas faltou na história o motivo dos guarda-chuvas. Eu costuro por você. Você é a história da minha vida, de verdade.”

          Minha mãe, inocentemente, ensinou a lição mais importante para este escriba de fundo de quintal: escrever sobre situações e coisas até dá um belo texto, mas falar das motivações de vida é que faz disso uma história. Foi minha primeira instrução sobre criação literária.

OBED DE FARIA JUNIOR
Enviado por OBED DE FARIA JUNIOR em 22/11/2008
Alterado em 03/04/2022


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