Sentimento Crônico

Cheio de prosa! Poesia, vide verso!

Textos


Se conselho fosse bom...

No quarto, a negritude densa da ausência de luz preenchia todos os mínimos espaços. Nada se via. Nada! A temperatura ambiente era de dezesseis graus centígrados e, mesmo assim, Júlio César transpirava muito; suava em bicas. A dor de cabeça explodia pelas têmporas, latejando um sofrimento atroz e a cada bombada arritmada do coração, artérias se enchiam de um oxigênio cáustico. Nu, de cócoras num dos cantos do recinto, com uma garrafa de cachaça à mão esquerda e uma arma engatilhada na oposta, ele tentava encontrar alguma esperança incrustada na angústia que se petrificara em seu peito.

– Júlio, larga isso tudo, vai tomar um banho e dormir. Amanhã tu raciocinas melhor, meu amigo – disse a voz mansa que, na penumbra, partia de algum outro ponto qualquer do ambiente.

– Não enche o saco, Gabriel! Porra! Você vem sempre com essa conversa mole de que amanhã é outro dia, que o sol vai raiar, que tudo vai dar certo e, de tanto dar ouvidos a você, olhe só onde eu cheguei. Feche essa matraca! – balbuciou entre dentes o embriagado Júlio, já com dificuldade para articular os vocábulos com clareza.

– Ao contrário, tu não me deste atenção e, por isso, agora lamentas. Te faltou firmeza para levar adiante teus propósitos. Entretanto, sempre é tempo de recomeçar.

– Cale a boca! Já disse!

Minutos de silêncio se seguiram, onde só se ouvia a respiração ofegante de Júlio. O ar estava por demais rarefeito e, vez por outra, ele tossia. A cada vez que isso acontecia, as náuseas quase provocam um vômito. Mas só lhe chegava o azedume até a boca. Então, mais um gole era entornado.

– Aquela vaca, filha da puta! Depois de tudo que eu fiz por ela, simplesmente me deu com o pé na bunda. Ingrata! – foi o lamento choroso de Júlio quebrando o silêncio.

– Cara! Eu te avisei! Aquela mulher não é flor que se cheire. Te arrancou de casa, torrou tudo que tu tinhas e, agora, já faz mais de dois meses que nem pensão pro teu bacuri tu mandas. – sentenciou Fausto, em voz rouca e pausada.

– Amor, meu velho! Amor! O que ele nos induz a fazer! – retrucou Júlio, como se algum dia ele tivesse, de fato, conhecido o que fosse amor verdadeiro.

– Amor? Ah! Ah! Ah! – disse Fausto, num riso sarcástico.

– Pára com isso, Fausto! Júlio já está atormentado demais para que fiques a torturá-lo pondo-lhe minhocas na cabeça – disse Gabriel num tom conciliador.

– Vai te ferrar, Gabriel! Tu não entende nada de mulher! Só sabe ficar aí dando conselhos de bundão. – debochou Fausto.

– Mas eu não entendo... fiz tudo pra agradar aquela maldita, porque me deixou na mão? Por que não usou de sinceridade comigo?

– Tenta não pensar nisso, meu irmão – emendou Gabriel tentando, uma vez mais, demover Júlio César de seu intento.

– Meu velho, não dá atenção pra ele. Sinceras são as putas. Só elas. Nunca mentem pra ti. Não vão casar, não vão te amar e o custo da trepada tem valor estipulado antes e não muda durante ou no final. E, ainda por cima, depois que o trato tá feito, não ficam com sono e nem vão atender telefonema da mamãe. – Fausto prelecionava com desenvoltura seu parecer sobre as mulheres.

– Será? – foi só o que conseguiu dizer Júlio.

– Já, as que dizem que te amam... sai de baixo! É “meu amorzinho” pra cá, “você precisa mudar” pra lá, “eu te adoro mas precisamos conversar”... Nossa! Discurso, discurso e discurso. Nas primeira bimbadas tu és o maioral. Garantido o burro na sombra, sai pra lá, Mané! – prosseguia Fausto.

– Júlio, não dá ouvidos a ele. Tu também não foste o mesmo, depois de um tempo. Existe uma acomodação natural em toda relação. Era necessário muito diálogo e não tantas discussões. Agora, ambos já se ofenderam demais, se magoaram demais, já se afastaram demais. Melhor deixar como está, joga uma pá de cal em tudo isso e, com o tempo, tudo se equilibra – dizia a voz da razão pela boca de Gabriel.

– Calem a boca, vocês dois! Estou tentando tomar coragem. Eu não vou passar a humilhação de ter de enfrentar o mundo amanhã. Por que não vai cada um cuidar da própria vida e me deixa aqui pra resolver essa parada? – disse Júlio, entre mais um gole e outro de bebida.

Novamente o silêncio imperou. Os primeiros raios do dia tentavam, ainda fracos, penetrar pelas frestas da veneziana. Mas ainda não tinham vigor suficiente a não ser para roçar nas folhas da janela.

– Bom! Tá chegando a hora. Quem não quiser ver, pode ir embora – disse Júlio enquanto acomodava-se sentado no chão frio, pondo a garrafa de lado e com o cano do revólver já encostado embaixo do queixo.

– Pensa direito, Júlio. Tu não sabes o que estás fazendo – foi o derradeiro apelo de Gabriel.

– ... Xi!!! Desta vez o bicho pega! – ironizou Fausto.

Já não havia mais tempo para outras considerações. O estampido seco do tiro ressoou longe! O corpo de Júlio estatelou-se no chão com a tampa do crânio estilhaçada pela bala que o atravessou.

***

O carro de polícia, com as luzes ligadas, estava estacionado em frente ao edifício de onde partira a ligação dando conta do som de um tiro. Segundo a denúncia de algum dos vizinhos, Júlio Cesar havia recebido mais alguém aquela noite em casa, porque de longe era possível ouvir, vez por outra, o som abafado de vozes discutindo. Era preciso investigar.

Policiais militares conversavam descontraídos na calçada. No saguão do prédio, somente um investigador da polícia civil e aquela senhora de olhos fundos e rosto branco, muito branco.

– Então a senhora estava na casa de sua mãe, né? Tem alguém que possa confirmar isso? – perguntou o investigador.

– Claro! Já lhe disse isso umas mil vezes – respondeu a mulher.

– Há quanto tempo vocês estavam separados?

– Três... não! Quase quatro meses.

– Posso saber o motivo? Vocês brigaram por causa de quê?

– Júlio perdeu tudo que tinha faz uns seis meses, quando os bancos não deixaram nem um mísero tostão sequer pra pagar a conta do condomínio.

– Ah! Já sei..., né? As coisas ficaram pretas pro lado dele e, quando a barra pesou, a madame foi embora, né? Não sobraram bens, né? A senhora sabe que aquele seguro de vida não cobre suicídio, né?... – emendava o policial em uma sucessão infinita de “nés”.

– Enquanto era só a depressão, eu até tentei ficar junto dele. Afinal, não podia abandoná-lo numa hora dessas. Há anos eu já não sentia mais nada por ele. Foi só por consideração que eu fiquei.

– Sei... sei...

– Mas, depois, fiquei com medo e fui embora.

– Medo do quê? Da pobreza? De ter de pegar no pesado? – insinuou sarcástico.

– Não... Eu fui embora quando ele começou a ouvir vozes... E ficava horas trancado no quarto conversando sozinho... Às vezes, até me arrepiava enquanto ele gritava “calem a boca”, “me deixem em paz”, “vão cuidar da própria vida”...

OBED DE FARIA JUNIOR
Enviado por OBED DE FARIA JUNIOR em 21/11/2008
Alterado em 04/09/2009


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras