Sentimento Crônico

Cheio de prosa! Poesia, vide verso!

Textos


No banheiro com Neruda

Noites atrás fui conhecer um lugar que me indicaram.  É um misto de restaurante e videokê.  Obviamente, não me fiz de rogado. Fui lá entregar-me aos prazeres gastronômicos e perturbar a audiência com o desprazer de ouvir meus duvidosos dons musicais.

A casa é aconchegante e bem charmosa, decorada com estilo e apresenta um cardápio interessante, exceto pelos preços salgados além da conta – para meu bolso, ao menos. De qualquer maneira, lá estando, perdi-me em porções de bolinhos de arroz e muita cerveja além, é claro, de desfilar o ecletismo de meu repertório nada ortodoxo.

Lá pelas tantas, senti o inevitável apelo da natureza de expelir o que da cerveja meu metabolismo não conseguiu absorver.  Indo em direção aos banheiros, fui notando nas paredes gravuras muito bonitas e que traziam gravadas trechos de poemas de Pablo Neruda.  Eu caminhava e ia me detendo a cada novo texto que encontrava e, por pouco, meu gosto pela leitura quase corrompeu minha continência urinária.  De qualquer forma, consegui chegar a meu destino.

De repente, estava eu lá, pronto para aliviar-me, quando notei dependurado bem na minha cara um novo quadro, com o trecho final da “Oda a la alegria”.  Ali, de pé, distraído na lida mecânica de esvaziar a água do joelho, eu fui me deliciando com as palavras que lia:

No se sorprenda nadie porque quiero
entregar a los hombres

los dones de la tierra,

porque aprendí luchando

que es mi deber terrestre

propagar la alegría.

Y cumplo mi destino con mi canto.”

Ao terminar a leitura, percebi que minha pontaria urinária, estrábica como a de qualquer homem que se preze, não só havia errado por muito o alvo – que não é pequeno! – mas foi, em grande parte, espalhar-se pela parede e, no ricochete dos jatos, acabou por respingar em minha calça de sarja bege novinha.   Nódoas molhadas rajaram minha vaidosa estampa.

Percebi que iria ficar ali por algum tempo até que o estrago feito secasse minimamente, antes que eu me expusesse novamente em público.   Como nada havia a fazer, fui mentalmente plagiando Neruda:

“Ninguém se surpreenda porque quero

ocultar das pessoas

os borrões da urina,

porque aprendi mijando

que é meu dever terrestre

melhorar a pontaria.

Eu cumpro meu destino esperando neste canto.”

Acho que, desta vez, extrapolei em meus devaneios poéticos!

OBED DE FARIA JUNIOR
Enviado por OBED DE FARIA JUNIOR em 17/11/2008
Alterado em 05/09/2009


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