Sentimento Crônico

Cheio de prosa! Poesia, vide verso!

Textos


Emissária da morte

Enquanto a viatura virava a esquina, os policiais já viam um pouco mais adiante a aglomeração formada. Ao estacionarem em frente ao pequeno sobrado amarelo, às duas e trinta e um da fria madrugada, uma pequena multidão se acotovelava com rostos colados às grades enferrujadas do grande portão. Bizarro convescote de curiosos em roupões e camisolas denunciando que saltaram todos da cama para assistir ao espetáculo dantesco que ali se apresentava.

Sentado à soleira da porta da sala estava seu Clemente, com as mãos ensangüentadas segurando a cabeça esfacelada de dona Eugênia, sua esposa, cujo corpo repousava macabramente sobre seu colo, vítima do derradeiro sono. O homem chorava e gritava nervosamente: “Agora, acabou! Agora, acabou!”. Caía em soluços que chegavam a engasgá-lo, urrava aos céus, auto flagelava-se com as unhas e, novamente, punha-se a gritar: “Agora, acabou! Agora, acabou!”.

Segundo o relato dos circunstantes, a vizinhança foi acordada com os gritos de seu Clemente que, há pelo menos vinte minutos, estava ele ali entoando seus lamentos mórbidos, com o cadáver a repousar-lhe no colo. Ninguém teve coragem de pular as grades. Alguma alma mais compassiva havia acionado a presença da polícia. 

Um dos policiais escalou o portão e ingressou, arma em punho, no território de que a morte já havia se apossado. Vislumbrou um molho de chaves pendurado na fechadura da porta da frente da casa e, tomando-o, experimentou todas até encontrar a que abrisse o portão que dava para rua. Seu colega entrou, também, apontando o revólver. 

Seu Clemente gritava e gritava em seu transe, sem dar a menor impressão de conseguia identificar o que ocorria à sua volta. Deixou-se recolher sem resistência e, assim, foi praticamente carregado até a viatura policial que, dali, seguiu direto para a delegacia. Alguns membros da assistência, após um convite intimidador de um dos policiais que conclamavam testemunhas da ocorrência, entraram no carro de algum deles e puseram-se a seguir a viatura.

Chegando à delegacia, seu Clemente, agora, já gemia seu lamento bem baixinho: “Agora, acabou! Agora, acabou!”. Foi acomodado numa cela isolada na carceragem. Os vizinhos que foram se apresentar como testemunhas chegaram logo em seguida, quase ao mesmo tempo. O delegado de plantão, sonolento e mal humorado, por ter sido acordado pelo rádio com o anúncio dos detalhes da ocorrência, perguntou-lhes se alguém sabia de alguma coisa.

“Dona Eugênia saiu de casa já faz uns dias”, disse uma senhora. “É! Ela comentou que seu Clemente estava pirando”, acrescentou um rapaz. “Ele estava trancado lá sozinho já fazia quase dois dias”, emendou um terceiro qualquer. “Calma! Um de cada vez!”, gritou o delegado. “Já entendi. O sujeito é maluco e matou a mulher”, concluiu com ar de autoridade. “Traga o biruta aqui pra ver se ele se explica”, determinou ao escrivão.

Seu Clemente foi jogado numa cadeira qualquer na sala utilizada para interrogatórios; ambiente inóspito, sem janelas e mal iluminado. O delegado e mais um agente já o aguardavam. “Pois bem, seu Clemente! O que o senhor tem a nos dizer?”, grunhiu o delegado. “Agora, acabou”, foi só o que ele conseguiu balbuciar, com os olhos arregalados e perdidos no vazio. O agente, que a tudo acompanhava, deu-lhe um tremendo bofetão na cara, enquanto berrava: “Oh! Maluco! Não se faça de besta. Aqui, comigo, essa história de que não sabe o que fez, não cola!”. 

Por incrível que pareça, o ato surtiu resultado e seu Clemente pareceu voltar do insano transe. Olhou para si mesmo, com as roupas e as mãos manchadas de muito sangue e começou a chorar, dessa vez, como uma criança. “Fala aí, seu Clemente. Vai! Desembucha sua história”, comandou o delegado. O homem, ainda meio zonzo e atônito, começou seu relato como se falasse somente para si:

Tudo começou há um mês, mais ou menos. Eu tava saindo pro trabalho lá na fábrica e encontrei no chão, na saída perto do portão, um bilhete que dizia: “Vim te buscar!”. Eu não dei muita bola e joguei o papel fora. Afinal, não parecia ter nada a ver comigo. Passei, como faço todos os dias, no bar da esquina pra tomar um café, antes de pegar o ônibus. Enquanto eu estava no balcão esperando, ouvi uma voz que gritava da rua: “Vim te buscar!”. Olhei e não vi ninguém. Perguntei ao balconista se ele viu quem tinha gritado e ele disse que não ouviu nada. Fui meio assustado pro ponto do ônibus, imaginando que alguém estava na espreita pra me pegar. Não tinha mais ninguém na rua. O ônibus chegou em seguida e eu fui trabalhar. Chegando lá, quando abri meu armário no vestiário, pelo lado de dentro da porta tinha algo escrito: “Vim te buscar!”. Aquilo começou a me assustar. Perguntei pros colegas quem tinha escrito aquilo e, quando eles vieram ver, já não havia mais nada na porta do armário. Pensei comigo que tava ficando louco. Trabalhei o dia inteiro e não conseguia deixar de pensar naquilo. Voltei pra casa assustado. Entrei em casa e contei pra Eugênia...

Nesse instante, ao mencionar o nome da mulher, seu Clemente começou, novamente a chorar. Trouxeram-lhe um copo d’água que ele nem sequer bebeu. Depois de alguns instantes, provocado pelo delegado, ele prosseguiu seu relato:

Eugênia só disse que achava que eu passava no bar de manhã pra tomar cachaça e não café. Jurei que já não tocava na maldita fazia três anos. Ela só balançou a cabeça e nem ligou pro que eu dizia. Fui tomar um banho antes de deitar, porque nem fome eu tinha pra jantar. Como sempre faço, liguei o rádio que fica no banheiro antes de abrir o chuveiro. Ao invés de música, surgiu uma voz horrorosa dizendo: “Vim te buscar!”. Eu joguei o rádio longe e sai pelado mesmo dali. Depois, vesti qualquer coisa e fui dormir. Essa maldita rotina se repetiu por três dias seguidos. Bilhete, grito na esquina, porta de armário, rádio... “Vim te buscar!”. Eu já não dormia, já não comia... e ninguém me acreditava, porque só eu notava o tal chamado. Eugênia tava convencida de que eu havia voltado a beber e foi embora ficar com a mãe. Eu me tranquei em casa depois disso e de lá não saí mais. Não ligava rádio, nem televisão, sequer acendia a luz. Ficava quase o tempo todo na cama enfiado embaixo das cobertas. Vez por outra eu cochilava e, daí, era acordado com aquele berro horrível: “Vim te buscar!”, mas nunca tinha ninguém no quarto. Eu tava mesmo ficando louco...

Seu Clemente foi interrompido pelo agente, mais uma vez, que lhe deu outro tapa, dessa feita na nuca. “Olha aqui, cidadão! Se você tá querendo se passar por louco pra se livrar da cagada, vai esquecendo. Você arrebentou a cabeça da sua patroa na parede, meu filho... Que é isso? Biruta uma ova! Conta logo...” O pobre homem, então, prosseguiu:

Eu tava lá, já achando que ia morrer, porque depois de tanto tempo sem comer quase nada, escondido na cama, sem dormir direito... eu achei que ia morrer. Daí, ontem à noite – já passava da uma – liguei pra casa da minha sogra e implorei pra Eugênia me ajudar. Ela bateu o telefone na minha cara me chamando de bebum sem-vergonha. Eu fiquei desesperado. A essa altura eu ouvia sussurros horripilantes em qualquer cômodo da casa: “Vim te buscar! Vim te buscar!”. Depois de um tempo, fui ao banheiro decidido a me matar, a cortar os pulsos. Não agüentava mais aquilo. Sei lá porque, abri o chuveiro pra deixar o sangue escorrer, depois que eu fizesse a merda. O vapor da água embaçou o espelho e lá tava escrito como se fosse com o dedo: “Vim te buscar!”. Eu peguei a tesoura e já tava pronto pra dar um fim em tudo, quando ouvi a porta da frente se abrindo. Corri pra lá e vi Eugênia parada, me olhando assustada. Fui na direção dela e dei um abraço. Eu precisava de colo. Então, ela me acolheu nos braços, me afagou a cabeça, beijou minha testa e me disse baixinho ao pé do ouvido: “Vim te buscar...”

OBED DE FARIA JUNIOR
Enviado por OBED DE FARIA JUNIOR em 17/11/2008
Alterado em 03/09/2009


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