Sentimento Crônico

Cheio de prosa! Poesia, vide verso!

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A visita do Anjo Ceifador
 
     Tive algumas complicações de saúde e, sem maiores rodeios, já deixo registrado que corri, sim, risco de morte. Foi daquelas pequenas bobagens que, quando não tratadas de início, acabam virando uma bola de neve que nos atropela impiedosamente.

     Não será por isso que trarei aqui algum relato muito dramático. O drama existiria se, enfim, eu tivesse morrido. Como isso não aconteceu, aquela carga de dramaticidade ficou só na intenção. Quem gosta da apelação pura dos relatos do mundo cão, situações a provocar rios de lágrimas, reflexões piegas e histórias de comovente superação, pode ir tirando seu cavalinho da chuva. Por aqui, por enquanto, continua a comemoração da vida – e isso, por menos apelativo que seja, suplanta qualquer outra coisa.


     De qualquer forma, assim foi que, de repente, vi-me ali frente a frente com o Anjo Ceifador. O que notei foi um sujeito um tanto quanto cabotino, a contar vantagens de suas prerrogativas de sair por aí dando fim à vida alheia. Com um ar para lá de escroque, ficou roçando aquela foice em meu pescoço enquanto anunciava que pouco faltava para que ele pudesse completar seu serviço.


     Cá com meus botões, não tenho muita preocupação com eventuais acertos de contas que se façam quando se parta desta para melhor. No meu “credicarma” tenho alguns pontos acumulados que, se não me dão nenhum saldo positivo de tal monta que possa me gabar, garantem um zero a zero relativamente cômodo em face da vida arriscada que tomei por opção. Meu epitáfio não trará arrependimentos pelo que deixei de fazer, por certo – apesar do preço que por isso se paga, inevitavelmente.


     Olhei bem na cadavérica cara do tal Anjo da Morte e disse-lhe que ele não passava de um simples lixeiro, recolhendo as sobras de gente que todos nós, algum dia, seremos. Atividade nobre, sem dúvida, mas que não o coloca lá na melhor das hierarquias neste infinito universo cheio de entidades tão sublimes. Além disso, disse-lhe que não ficasse assim tão gabola, porque eu pressentia que ainda me restava algum gás para queimar.


     Dito e feito! Mercê dos avanços desta nossa medicina do terceiro milênio, acrescido de um indispensável bafejo de boas graças vindo de alguma esfera divina, acabei por enveredar pelo caminho do restabelecimento. Rangendo os dentes de forma tal que quase desconjuntou aquela caveira bizarra, o Ceifador acabou por fazer meia volta, esvoaçando sua mortalha rota e demodê e foi embora, com a promessa de que algum dia voltaria.


     É! Foi quase! Mas, ainda, não foi desta vez!

Enviado por OBED DE FARIA JUNIOR em 02/04/2009




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