Sentimento Crônico

Cheio de prosa! Poesia, vide verso!

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Navegar ou viver

     “Navegar é preciso, viver não é preciso.” Acordei com essa frase pipocando nas idéias. Na verdade, fui escovar os dentes cantarolando um fado, com a voz de Amália Rodrigues sussurrando acordes dolentes.  Liguei a cafeteira tentando puxar da memória outra versão do fado, esta na voz de um brasileiro: Os Argonautas, por Caetano Veloso. Quando dirigia-me à minha mesa de trabalho, já quase que ouvia Chico Buarque entoando em sua foz desafinada “Tanto Mar”.


     Antes mesmo de iniciar a penosa lida das segundas-feiras, resgatei da estante Fernando Pessoa, que eternizou sua vocação literária em “Navegar é Preciso”. Ah! Pessoa! Espírito universal que traduziu a alma humana em língua portuguesa. Quem não haveria de se comover com sua reflexão de que, para ele, essencial era criar para amplificar a vida antes mesmo de gozar a vida em si, em suas banalidades cotidianas.


     E Fernando Pessoa buscou sua inspiração naquela máxima que motivou os grandes navegadores lusitanos na época das expedições marítimas de descobrimento e exploração. A bem da verdade, antes disso, ela já era usada por antigos pescadores gregos que a inscreviam em seus barcos, como lembrete perene da necessidade de buscar o sustento no mar. Aliás, o registro formal mais antigo que se tem notícia, está em Plutarco, que biografou Pompeu, general romano que em latim já instigava seus marinheiros amedrontados à guerra: “Navigare necesse; vivere non est necesse."


     O que ressalta nisso tudo, ao que parece, é que o sentido por trás da frase é que é essencial dar prevalência ao que sustenta a vida como condição básica para preservar a própria vida. Por contraditório que possa parecer, não é necessário viver, mas sim, é indispensável focar naquilo que preserva e dá sentido à vida. Ao artista é essencial dedicar-se à criação, porque a vida para ele não teria sentido sem isso. Ao trabalhador é fundamental que se concentre na busca de seu pão, já que sem isso a vida pereceria. Ao guerreiro é primordial que não fuja à luta, uma vez que sem ela não se obteria a vitória que disso se espera.


     Entretanto, hoje em dia, o sentido dos vocábulos ganhou novas dimensões, porque o avanço tecnológico se apropria de termos ancestrais e acaba lhes dando conotações totalmente diferentes. “Navegar”, atualmente, equivale a “surfar” na rede mundial de computadores, transitar no cyber espaço, se lançar a jornadas virtuais na Internet. Considerando que ficar grudado no computador “navegando” é um vício, em maior ou menor grau, para muita gente – inclusive para este que aqui se manifesta – “Navegar é preciso, viver não é preciso” acaba representando a assunção completa de que o vício da vida virtual na Internet absorve totalmente as energias que deveriam ser empregadas de maneira produtiva e conseqüente na vida real.


     Tenho, como todo mundo, meus embates pessoais a vencer. Assim, como conseqüência é indispensável que eu me lance ao trabalho que me dá o sustento. Da mesma forma, não penso em abandonar atividades criativas que, em si, preservam de certa forma a sanidade mental, como contrapeso às pressões do dia-a-dia. Nesse sentido, sem dúvida, navegar é preciso. Por outro lado, ficar horas e horas literalmente enredado na Internet, é tão pernicioso quanto entregar-se ao jogo ou à bebida. Nesse sentido, navegar não é preciso, ao contrário, é absolutamente dispensável.

Enviado por OBED DE FARIA JUNIOR em 08/02/2009




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