Sentimento Crônico

Cheio de prosa! Poesia, vide verso!

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Resquícios
 
 
          A luz do sol despejava-se no cotidiano sem tomar conhecimento de nada em seu caminho. Lambia sem discriminação, tanto as piscinas das coberturas que enfeitam as colunas sociais, como as antenas de tevê dos telhados suburbanos de lares que dão mote ao mundo cão. As janelas mal dormidas começavam a abrir-se aqui e acolá, depois de uma noite em que o calor imponente do verão não poupou ninguém desabrigado de condicionadores de ar. 
 
          Numa janela, entretanto, a luz do sol encontrava o obstáculo de uma velha cortina de estampas fora de moda, puída pelo uso de anos. Mesmo assim, pequenos furos no tecido foram as brechas por onde a luminosidade entrou, indo diretamente ferir os olhos de um sono cansado que ainda jazia na cama, até constrangê-lo a deixar-se acordar.
 
          Assim foi que ela, ainda sonolenta, deu-se conta que o dia já estava presente. As pálpebras resistiam em mover-se diante da agressão solar. Notou-se com uma dor de cabeça terrível. O corpo doído denunciava que os efeitos do tempo já cobravam seu preço depois das estrepolias noturnas. Seminua virou-se para buscar o aconchego dos braços fortes nos quais adormecera durante a madrugada. Mas nada encontrou a não ser lençóis amarrotados e um travesseiro em desalinho.
 
          Decepcionada, um certo tanto, confortou-se com a idéia de que havia um carinho por trás do gesto de quem não quis acordá-la antes da hora. Agarrou-se ao travesseiro e respirou-lhe os cheiros impregnados de suor e loção de barba. Excitou-se novamente. E lembrou dos olhares que a capturaram, das mordidas no pescoço que a tonificaram, do embaralho de pernas e braços que geraram prazeres e prazeres. Por instantes, quase emocionou-se outra vez.
 
          Na boca, um gosto acre dos humores da lascívia. Percebeu-se com a bexiga cheia e, com certo sacrifício, pôs-se de pé em direção ao banheiro. Jogou longe a última peça de roupa que lhe cobria o dorso, já no intento de recompor-se sob a ducha fria. Encontrou no caminho, ao lado da cama, o preservativo usado; largado, úmido e repleto de satisfação. Recolheu-o do chão para desová-lo no cesto de lixo do banheiro. 
 
          Lembrou-se dos sorrisos e gemidos que ela proporcionara àquele homem que ela tanto queria bem. Olhou-se no espelho e viu as rugas que já se anunciavam sem disfarce sob a maquiagem toda borrada. 
 
          Pensando melhor, notou que entre ela e aquela porção de látex, pouca diferença havia.  

 

Enviado por OBED DE FARIA JUNIOR em 19/11/2008




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